VEJA SP – Brecha jurídica permite a volta dos bingos na capital

Bingo, Destaque I 16.08.19

Por: Magno José

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Imperador, na Avenida Sumaré: volta em grande estilo marcada para meados de setembro (Almeida Rocha/Veja SP)

Pouco antes das 17 horas do dia 6 de agosto, uma terça-feira, as 250 cadeiras do Espaço São Paulo, na Vila Prudente, estavam quase todas ocupadas. Até 2007, o local abrigou o Bingo São Paulo, que fechou as portas após a proibição do jogo no país. Nos últimos anos, o endereço abrigou um bufê, mas desde julho as bolinhas numeradas voltaram a saltar por ali sem os sustos da clandestinidade. Isso foi possível graças a um alvará temporário amparado na Lei 13204/2015. O texto permite que entidades filantrópicas façam sorteios. Banners na porta avisam que o bingo é promovido pela Associação Recreativa Cultural Portela — “xará paulistana” da famosa escola de samba carioca —, que afirma oferecer cursos profissionalizantes para a população carente da Zona Sul. Procurada pela reportagem, a equipe não quis dar detalhes sobre as ações ali realizadas, o montante da verba arrecadada com a jogatina e a destinação dela.

Fora esses cartazes, do lustre opulento à dinâmica da casa, tudo no lugar remete ao passado, no caso, aos anos 90. Apesar das mesas lotadas, as pessoas — a maioria, aposentadas — mal trocam palavras entre si e permanecem com a cabeça baixa, atentas aos números ditados. Nada de conversa sequer com os funcionários, que transitam quase num trote, sérios, recolhendo em cima das mesas o dinheiro vivo — notas entre 2 e 100 reais, que são trocadas por cartelas. É jogo rápido: em menos de cinco minutos alguém grita “bingo” e leva uma premiação que pode oscilar de 300 reais a um carro, e inicia-se outra rodada. Estima-se que uma casa dessas fature em média 15 000 reais por hora. Da cartela, que custa entre 2 e 5 reais, aos salgadinhos e drinques servidos, nada de nota fiscal. Pela lei, todo lucro deveria ser revertido para uma organização ligada a causas sociais, que aparece como locatária do espaço de eventos. Na prática, pessoas desse segmento afirmam que as instituições ficam com aproximadamente 15% dos rendimentos. A maioria é controlada por empresários que fizeram fortuna nos anos 90 graças aos bingos. Eles permanecem no mesmo endereço e, muitas vezes, mantêm até o nome. A cada semana uma dessas casas é reaberta, e hoje em dia existem cerca de quarenta nesses modelos na cidade (sem falar em outras quarenta que funcionam na clandestinidade).

Promoções chamam a atenção de quem passa pela Avenida São João (Rogerio Pallatta/Veja SP)

Quem passa pela Avenida Sumaré à noite certamente já avistou os holofotes na altura do número 581, um casarão em obras onde antes funcionava uma concessionária. É a pompa para marcar a volta do Imperador, um dos bingos mais famosos da capital. Ele deverá ser inaugurado em meados de setembro, com capacidade para 500 jogadores, além de bar e restaurante. O primeiro a abrir as portas graças à brecha na lei, em dezembro de 2017, foi o Espaço Real Itaim (ex-Bingo Real Itaim), na Rua Joaquim Floriano, um dos poucos com página na internet e redes sociais. Enfrentou algumas batidas policiais, a mais recente em março, por causa de uma denúncia anônima. O alvará foi suspenso, mas recuperado cinco dias depois. Segundo a assessoria de imprensa, o estabelecimento beneficia 1 500 famílias do Projeto Esperança de São Miguel Paulista, bairro da Zona Leste localizado a 35 quilômetros dali. Quanto é arrecadado e o que fazem com esse dinheiro? A administração se recusou a partilhar essa informação.

Em julho, o Espaço Centro Antigo foi aberto na Avenida São João, exatamente no mesmo ponto onde ficava o Bingo Olido. O lugar arrecada fundos e também realiza uma campanha do agasalho para o Instituto Cistema. “Por causa de problemas da gestão passada, estamos com uma dívida de 60 000 reais e ainda não sabemos ao certo para onde vamos levar essas roupas, mas será tudo encaminhado, pode acreditar”, diz Pedro do Carmo Alves, presidente da organização. Sediada em Ribeirão Pires, sem página na internet nem rede social, a empresa faz eventos beneficentes. “Pagamos um aluguel ao espaço e a renda irá para nós”, afirma. Mas ele diz não ter conhecimento do valor investido, do retorno previsto nem do tipo de jogo que ocorre por lá. “É sorteio, não? Estive na inauguração e, se houve bingo, aconteceu só depois que eu saí.”

Em outubro do ano passado, começaria a rodar o maior globo da cidade, no Espaço de Eventos Life 23 de Maio, na Rua Pedroso, na Bela Vista, um investimento de 6 milhões de reais com 2 400 metros quadrados e 750 lugares. Já mobiliado, teve a inauguração barrada às vésperas pela prefeitura por questões de segurança. Houve uma briga entre os sócios, e o negócio ficou com o empresário Pedro de Campos Figueiredo, filho de Paulo Figueiredo Jr., dono do Grupo ViaSul, uma das principais concessionárias de transporte do Nordeste. Ele acumulou uma dívida de mais de 1,2 milhão de reais com fornecedores e pretende passar o empreendimento para a frente. Há interessados, e o bingo poderá ser aberto ainda neste ano.

De acordo com nota enviada pela Secretaria de Segurança Pública, desde janeiro o Departamento de Polícia Judiciária da Capital realiza a Operação Caracol, que fecha espaços irregulares. Nesse período, houve 881 ações e 631 pessoas foram autuadas. Sobre esse novo modelo de sorteios, a polícia diz que investiga casos de irregularidades.

O bingo é o terceiro jogo mais popular da cidade, atrás do bicho e das máquinas caça-níqueis. “É bem comum na América Latina. Mas, nos Estados Unidos, não há em cassinos e ocorre apenas em igrejas”, conta Magno José, presidente do Instituto Jogo Legal, que defende a aprovação da prática. “Estamos em uma zona cinza, sem regulamentação, e por isso pode haver lavagem de dinheiro. Acreditamos que durante o governo de Jair Bolsonaro seja aprovado no Congresso”, diz José, que afirma ter mais de 60% dos deputados a favor da legalização. Enquanto isso, os empresários da jogatina se aproveitam das brechas da lei. “Não quero generalizar, mas, até que haja uma legislação mais clara, muitas organizações vão tomar emprestada a etiqueta filantrópica para legalizar uma prática proibida”, acredita Rogério Sanches Cunha, promotor de Justiça de São Paulo. (Veja São Paulo – Edição nº 2648 – Ana Carolina Soares)

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