Jurisprudência Trabalhista – Carência de Ação por Impossibilidade Jurídica de vínculo de emprego entre Cambista de Jogo de Bicho e Banqueiro.

Especial I 23.07.05

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RO nº 384.2004.002.23.00-0
ORIGEM: 2ª VARA DO TRABALHO DE CUIABÁ/MT
RELATOR: JUIZ GUILHERME BASTOS
REVISORA: JUÍZA LEILA CALVO
RECORRENTE: AURENI GONÇALVES
ADVOGADOS: CÉSAR LIMA DO NASCIMENTO E OUTRO(S)
RECORRIDO: JOÃO ARCANJO RIBEIRO

EMENTA

CARÊNCIA DE AÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE CAMBISTA DE JOGO DO BICHO E O BANQUEIRO EXPLORADOR DA ATIVIDADE.

Dentro da moderna concepção jurídico-processual, a análise da
possibilidade jurídica do pedido deverá se restringir ao seu aspecto
puramente processual, e na esteira da lição do Professor Humberto Theodoro
Júnior "… A possibilidade jurídica, então, deve ser localizada no pedido
imediato, isto é, na permissão, ou não, do direito positivo a que se
instaure a relação processual em torno da pretensão do autor.". No caso, a
impossibilidade jurídica do pedido, como condição da ação, não se verifica
na pretensão de reconhecimento de vínculo de emprego entre o cambista de
jogo do bicho e o banqueiro explorador da atividade, cumulado com o
pagamento de direitos trabalhistas, eis que tais pedidos não esbarram em
expressa vedação legal. Alias, deduza-se, por importante, não há que se
confundir a ilicitude do objeto do contrato de trabalho (elemento
jurídico-formal) com a possibilidade jurídica do pedido (condição da
ação), porquanto se os pedidos relativos ao reconhecimento do vínculo
empregatício e pagamento de verbas trabalhistas encontram, ou não, amparo
na legislação trabalhista, isso não é questão ligada às condições da ação,
mas ao mérito da demanda. Recurso Ordinário a que se dá parcial provimento
para, afastando a carência de ação por impossibilidade jurídica do pedido,
determinar a baixa dos autos à origem para completar a relação jurídica
processual, haja vista a ausência de citação inicial do réu, e ulterior
prosseguimento do feito.

Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, em que são partes as
acima indicadas.

RELATÓRIO

Trata-se de Recurso Ordinário interposto em desfavor da r. sentença
acostada às fls. 11/29, cujo relatório adoto, proferido pelo
Excelentíssimo Juiz do Trabalho Substituto Alexandre Augusto Campana
Pinheiro, que, atuando na e. 2ª Vara do Trabalho de Cuiabá-MT, extinguiu o
processo sem julgamento de mérito, por impossibilidade jurídica do pedido,
nos termos do artigo 267, inciso VI, do CPC.

Inconformado, o reclamante interpôs o Recurso Ordinário acostado às fls.
31/44 dos autos, pleiteando novo julgamento da causa e, por corolário, o
reconhecimento do vínculo de emprego havido entre as partes com a
condenação do reclamado ao pagamento dos direitos rescisórios e
indenizatórios pleiteados na petição inicial

O recorrente foi dispensado do recolhimento das custas processuais (fl. 29).

Apesar de regularmente intimado à fl. 46, via edital, o reclamado não
ofertou contra-razões ao recurso interposto, conforme noticia a certidão
de fl. 48-verso.

Os autos não foram encaminhados ao Ministério Público do Trabalho, nos
termos do artigo 35 do Regimento Interno desta Corte.

É, em síntese, o relatório.

VOTO

ADMISSIBILIDADE

Presentes os pressupostos processuais de admissibilidade, conheço do
Recurso Ordinário aviado pelo obreiro.

MÉRITO

CARÊNCIA DE AÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. RECONHECIMENTO DE
VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE CAMBISTA DE JOGO DO BICHO E O BANQUEIRO
EXPLORADOR DA ATIVIDADE.

O douto Juízo a quo, examinando a petição inicial entendeu que a presente
demanda "’a priori’ se mostra inadmissível. A autora já na inicial aponta
tratar-se de vendedora de bilhetes do jogo do bicho (cambista), requerendo
o reconhecimento do vínculo de empregatício em atividade legalmente
vedada, tornando-se inútil o integral processamento do feito." (fl. 15).
Consignou, ainda, em suas razões de decidir que "… juridicamente
impossível o pedido de reconhecimento de vínculo empregatício nas
atividades ligadas ao jogo do bicho. Do exposto, tratando-se de objeto
ilícito, sendo vedado o reconhecimento legal das atividades no jogo do
bicho, extingo o processo, sem julgamento do mérito, por impossibilidade
jurídica do pedido, nos termos do artigo 267, inciso VI do Código de
Processo Civil. Como questão procedimental, registro que de acordo como o
artigo 267, parágrafo terceiro do Estatuto Processual Civil, o Juiz poderá
conhecer de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não
proferida a sentença de mérito, de matéria ligada as condições da ação."
(fl. 28).

Ato contínuo, concluiu que a pretensão deduzida na petição inicial é
juridicamente impossível extinguindo o processo sem julgamento de mérito
nos termos do artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil.

Não obstante a respeitável e bem desenvolvida r. sentença primária,
entendendo ser procedente em parte o inconformismo do reclamante. Se não,
vejamos.

A pretensão formulada na Reclamação Trabalhista tem por objeto o
reconhecimento do vínculo de emprego do cambista do jogo do bicho e o
banqueiro explorador da atividade e de pagamento de direitos trabalhistas.

Inicialmente, releva ponderar que, segundo as lições da teoria geral do
processo, para que a ação possa ser admitida em juízo é indispensável
estarem presentes os requisitos para tornar possível a provocação e a
manifestação jurisdicional. Tais requisitos de admissibilidade consistem
em condições que possibilitem o exercício constitucional do direito de
ação e que, por tal motivo, são denominadas condições da ação.

A propósito, o Código de Processo Civil seguiu a teoria de LIEBMAN,
adotando como condições da ação a legitimidade da parte, o interesse
processual e a possibilidade jurídica do pedido, mesmo quando tal teoria
já havia sido revista pelo próprio LIEBMAN que, na 3ª edição de seu
"Manual" já não mais mencionava a possibilidade jurídica do pedido como
condição da ação.

Segundo Cândido Dinamarco afirma-se, em geral, que o requisito da
possibilidade jurídica, a cuja existência se subordina a existência da
ação, significa a admissibilidade, em abstrato do provimento desejado, ou
a existência deste dentro do ordenamento jurídico, ou que só há
possibilidade jurídica se o direito objetivo substancial admitir em tese o
pedido, advertindo que "… quando se passa a dar exemplos de casos em que
falece essa condição, mostra-se a fragilidade desses conceitos e a sua
inaceitabilidade." (in Execução Civil, Malheiros Editores, 2002, São
Paulo, p. 305/396).

Sem pretender esmiuçar tema que tem motivado acirradas discussões entre
doutrinadores de escol, tem-se que parte da doutrina identifica a
possibilidade jurídica do pedido tendo em vista a admissibilidade, em
abstrato, do provimento desejado dentro do ordenamento jurídico,
aferindo-se, pois, essa condição da ação mediante a apreciação do petitum
com o direito objetivo.

A teoria de LIEBMAN, contudo, sofreu sérias críticas quando entendeu por
exercício do poder jurisdicional a decisão sobre o mérito da causa,
concluindo daí que não há ação nem exercício da função jurisdicional onde
não estejam presentes as condições da ação, tornando, assim, sem
explicação a atuação jurisdicional do Estado quando se proclama a carência
de ação.

Surgiu então um outra corrente doutrinária que encara a possibilidade
jurídica de uma forma mais ampla, permitindo-se a análise também do
fundamento em que se baseia a pretensão o autor, qual seja, a causa de
pedir. Construiu-se, assim, a chamada teoria abstratista reelaborada que
concebe as condições da ação – que estabelece ponto de conexão entre os
planos material e processual – como requisitos para o julgamento do
mérito. Assim, haveria o exercício da jurisdição mesmo quando o processo
viesse a ser extinto, sem exame do mérito, por falta das condições da
ação.

Segundo essa teoria, o exame das condições da ação deve ser procedido em
conformidade com narrativa feita pelo autor na petição inicial, e não de
acordo com a efetiva situação de fato, contrária ou não ao direito. Assim,
a análise da existência das condições da ação deverá ser feita in statu
assertionis, isto é, à vista do que se afirmou, uma vez que a análise das
provas apresentadas desde o início da ação remete ao mérito da decisão,
fugindo das hipóteses de se decretar a carência de ação.

Leciona Jorge Pinheiro Castelo que "… se, v.g. na exordial vier
declarado que a relação tem origem em atividade criminosa, dever-se-á dar
pela carência de ação, visto que se verificou ‘in statu assertionis’ a
impossibilidade jurídica do pedido por peculiaridade da causa de pedir.
Aliás, à mesma conclusão chegaria a teoria eclética, com a diferença de
que para os ecléticos não teriam existido ação, processo e exercício da
jurisdição. Todavia, se a constatação de que a relação de emprego é
oriunda de atividade criminosa, só for obtida após a avaliação das provas
e à vista da real e concreta situação trazida a julgamento, a decisão
deverá ser de improcedência da ação, produzindo a coisa julgada material.
Aqui reside a diferença de perspectiva imposta pela reelaborada teoria do
direito abstrato de agir, com relação à teoria eclética, para a qual,
ainda, neste caso, a decisão seria de carência de ação (com o que não
concordamos)." (in O Direito Processual do Trabalho na Moderna Teoria
Geral do Processo, São Paulo, LTr, 1993, p. 227/228).

Para o i. jurista "… Falemos, pois, de (im)possibilidade jurídica da
demanda pelo seu aspecto negativo (impossibilidade jurídica da demanda por
obstáculo ligado ao pedido, à causa de pedir e à condição especial da
pessoa), ou, pelo seu aspecto positivo (tipicidade prévia do direito
objeto da ação), sempre aferida ‘in statu assertionis’ e entendido como
condição para o exame do mérito da causa." (in Ob. cit., p. 227)

Contudo, quando averiguamos, p. ex., a ilicitude da causa de pedir estamos
inspecionando o direito material.

Veja-se que, no caso em exame, na sentença proferida pelo e. Magistrado,
foi necessário proceder-se à análise da questão da relação de emprego, que
se encontra no âmbito da relação de direito material colocada à apreciação
desta Justiça Especializada, para que se pudesse aferir a existência de
uma das condições da ação. E o cotejo dos pedidos de reconhecimento do
vínculo de emprego e do pagamento de verbas trabalhistas com o direito
material deduzido em juízo leva a uma solução de mérito, ou seja, a sua
procedência ou improcedência.

Nesse prisma, coerente a linha de pensamento adotada pelo jurista Humberto
Theodoro Júnior a respeito da possibilidade jurídica do pedido, verbis:

"Predomina na doutrina o exame da possibilidade jurídica sob o ângulo de
adequação do pedido ao direito material a que eventualmente correspondesse
a pretensão do autor. Juridicamente impossível seria, assim, o pedido que
não encontrasse amparo no direito material positivo.

Allorio, no entanto, demonstrou o equívoco desse posicionamento, pois o
cotejo do pedido com o direito material só pode levar a uma solução de
mérito, ou seja, à sua improcedência, caso conflite com o ordenamento
jurídico, ainda que a pretensão prima facie, se revele temerária ou
absurda.

Diante dessa aguda objeção, impõe-se restringir a possibilidade jurídica
do pedido ao seu aspecto processual, pois só assim estaremos diante de uma
verdadeira condição da ação, como requisito prévio de admissibilidade do
exame da questão de mérito.

Com efeito, o pedido que o autor formula ao propor a ação é dúplice: 1º, o
pedido imediato, contra o Estado, que se refere à tutela jurisdicional; e
2º, o pedido mediato, contra o réu, que se refere à providência de direito
material. A possibilidade jurídica, então, deve ser localizada no pedido
imediato, isto é, na permissão, ou não, do direito positivo a que se
instaure a relação processual em torno da pretensão do autor." (g. nosso –
In "Curso de Direito Processual Civil", 36ª edição, Forense, Rio de
Janeiro, 2001, volume I, p. 48/49).

Portanto, a pretensão trazida a juízo pelo autor de reconhecimento de
vínculo empregatício e de pagamento de direitos trabalhistas, com a
indicação do reclamado responsável pela quitação, não é vedada
expressamente pelo ordenamento jurídico vigente, não importando se o
reclamado é, ou não, devedor; se presentes ou não os requisitos do artigo
3º da CLT ou se o contrato de trabalho é ou não nulo, eis que essas
matérias serão analisadas quando do exame do mérito.

A questão relativa à prestação de serviços realizada pelo autor como
vendedor de bilhetes do jogo do bicho não nos leva ao reconhecimento da
carência de ação, porque o exercício dessa atividade não configura uma
condição da ação, mas causa de declaração da procedência ou improcedência
dos pedidos formulados de reconhecimento de vínculo de emprego e pagamento
de haveres rescisórios e direitos trabalhistas. Não há que se confundir a
ilicitude do objeto do contrato de trabalho (elemento jurídico-formal) com
a possibilidade jurídica do pedido (condição da ação).

Ante o exposto dou parcial provimento ao apelo do reclamante para,
afastando a carência de ação por impossibilidade jurídica do pedido,
determinar a baixa dos autos à origem para completar a relação jurídica
processual, haja vista a ausência de citação inicial do réu, e ulterior
prosseguimento do feito.

CONCLUSÃO

Ante o exposto, conheço do recurso ordinário interposto pelo reclamante e,
no mérito, dou-lhe parcial provimento para, afastando a carência de ação
por impossibilidade jurídica do pedido, determinar a baixa dos autos à
origem para completar a relação jurídica processual, haja vista a ausência
de citação inicial do réu, e ulterior prosseguimento do feito, nos termos
da fundamentação supra.

ISTO POSTO:

DECIDIU o Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Vigésima Terceira
Região, por unanimidade, conhecer do recurso ordinário interposto pelo
reclamante e, no mérito, por maioria, dar-lhe parcial provimento para,
afastando a carência de ação por impossibilidade jurídica do pedido,
determinar a baixa dos autos à origem para completar a relação jurídica
processual, haja vista a ausência de citação inicial do réu, e ulterior
prosseguimento do feito, nos termos do voto do Juiz Relator, vencido o
Juiz Osmair Couto que negou provimento ao recurso. Ausentes os Exmos.
Juízes Roberto Benatar, Presidente, com causa justificada e, João Carlos
Ribeiro de Souza, conforme RA 999/2004 do c. TST. Não participou do
presente julgamento o Exmo. Juiz Bruno Weiler, em face da vinculação ao
processo do Exmo. Juiz Guilherme Bastos, como Relator.

Cuiabá-MT, terça-feira, 3 de agosto de 2004.

GUILHERME BASTOS

Juiz Relator

Fonte: DJ/MT nº 6960
Data de Publicação: 24/08/2004
Data de Circulação: 25/08/2004

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