A contravenção de jogo de azar não abrange os bingos

Opinião I 16.10.02

Por: sync

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A questão posta em debate diz com a possibilidade de enquadramento dos bingos como jogos de azar (art. 50, §3º, “a”, do Dec-Lei 3.688/41 – Lei das contravenções) em caso de constatação de alguma irregularidade nas máquinas. O presente trabalho visa desenvolver superficialmente alguns conceitos para ao final concluir pela falta de adequação do conceito de bingo ao conceito jurídico de jogo, bem como a impossibilidade da responsabilização penal daqueles que, no exercício da atividade de bingo, agem maliciosamente mediante máquinas “viciadas”. Restando, porém, a possibilidade de fiscalização administrativa.
1.1.Conceito de Jogo de azar
1.2.Conceito de Bingo relacionado ao conceito de Loteria
Segundo José Frederico Marques devido a omissão do legislador penal em conceituar o jogo para efeitos penais fez com que o operador do direito buscasse a sua delimitação tracejada pelo direito civil. Dessa forma, conclui-se que, para ocorrer a contravenção penal do art. 50, §3º, “a”, é necessário a bilateralidade, pois o jogo, segundo Washington de Barros Monteiro, ” é o contrato pelo qual duas ou mais pessoas se obrigam a pagar certa soma àquela, dentre as contratantes, que resulta vencedora na prática de determinado ato, a que todas se entregam.
Ou seja, segundo o ilustre Jurisconsulto José Frederico: “Se o jogo pressupõe sempre a existência de dois contendores pelo menos, permitido ainda é afirmar, em face de nossa legislação penal, que essa bilateralidade de posições exige, ainda a equivalência de situação diante da álea e risco de disputa”
E com a clareza que lhe é intrínseca conclui que: “Se apenas uma pessoa corre o perigo de perder, não há jogo, e sim, conforme o caso figura análoga ou semelhante”
Realmente, existe na legislação penal figura semelhante ao jogo de azar, qual seja a loteria – art. 51, §2º, da Lei das Contravenções Penais (Dec-Lei 3688/41) – sendo esta “toda ocupação que, mediante a distribuição de bilhete, listas, cupões, sinais, símbolos ou meio análogos, faz depender de sorteio a obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de outra natureza.”Ou seja, na Loteria o que importa para o recebimento do prêmio é o sorteio, conclui-se também que na loteria há o risco de perda apenas para uma das partes, o que não ocorre com o jogo de azar que diz com a bilateralidade do risco de perda.
Ocorre que no caso da Loteria – em regra vedada como ocorre com o jogo de azar – existe uma peculiaridade: a possibilidade de autorização legal para o exercício dessa atividade – art. 51, §3º (Dec-Lei 3.688/41). Ou melhor, o Legislador, apesar de punir a prática da Loteria (art. 51, “caput”), ao mesmo tempo submete o seu exercício à autorização legal. Em suma, somente será punido aquele que desenvolve a loteria sem autorização legal.
A autorização legal para a atividade dos bingos – espécie de loteria – veio com a Lei 9.615, de 24 de março de 1998 (Lei Pelé) que em seu Decreto regulamentar n º 2.574 (art. 74, §1º) define: “jogo de bingo constitui-se de loteria em que se sorteiam ao acaso números de 01 a 90, mediante sucessivas extrações, até que um ou mais concorrentes atinjam o objetivo previamente determinado.” Ou seja, se o bingo é loteria, não se enquadra no conceito jurídico de jogo, o que impede qualquer responsabilidade penal a título de jogo de azar, pois, falta-lhe a bilateralidade do risco de perda.
É certo que a mencionada lei sofreu algumas alterações – Lei 9.981, de 14 de julho de 2000 e decreto regulamentar n º 3.659, de 14 de novembro de 2000 – sendo que, neste último – Dec. 3.659 – o bingo também é conceituado: “Art. 2º. Jogo de bingo é aquele em que se sorteiam ao acaso números de 1 a 90, mediante sucessivas extrações, até que um ou mais concorrentes atinjam o objetivo previamente determinado, podendo ser realizado nas modalidades de jogo de bingo permanente e jogo de bingo eventual”
O problema central da questão está em definir: o Bingo, afinal é jogo (conceito jurídico) ou loteria? Daí surgirá a resolução do objeto da presente questão.
Ora! O Bingo, como está definido em ambos diplomas legais, é espécie de loteria, pois, a obtenção do prêmio depende de sorteio e, sobretudo, haverá o risco da perda apenas para uma das partes e, relembrando a conclusão do Mestre Frederico Marques: “Se apenas uma pessoa corre o perigo de perder, não há jogo, e sim, conforme o caso figura análoga ou semelhante”.
Mas, porque a lei faz questão de mencionar que o Bingo é espécie de jogo?
Ora! Está clarividente que o legislador, na contra-mão da boa técnica legislativa, utilizou-se, para definir jogo, do seu conceito vulgar, coloquial o que como vimos é totalmente diferente do conceito jurídico de jogo, que diz com a bilateralidade do risco de perda.
– O pior é que definiu-no como espécie de jogo, mas ainda sim sem definir, penalmente, o conceito de jogo em si. Ou seja, se não definiu o que venha a ser a elementar típica “jogo” o interprete é obrigado, mais uma vez – como o conceito de “jogo de azar” – a recorrer ao conceito de jogo no direito civil, ou seja, somente será jogo aquela situação onde o risco de perder existe para ambas as partes.
Outra situação também pode ser vislumbrada, ou seja, o legislador preocupou-se em enquadrar o bingo como jogo para aproximá-lo, indevidamente, da contravenção do jogo de azar ( art. 50, §3º, “a” – Dec-Lei. 3688/41).
– Ocorre que esqueceu-se o legislador que no mesmo Dec.Lei 3.688/41 definiu o que venha a ser loteria e, sem maiores esforços de interpretação, denota-se que o bingo é, sem dúvida, espécie de loteria, ainda que o legislador tenha subtraído isso do conceito de bingo que colacionava a Lei 9.615/98.
Dessa forma, qualquer delegado que não atentar para essas constatações e permitir o prosseguimento ou instauração da persecução penal criminal, mesmo sendo totalmente atípica a conduta, incorrerá em grave constrangimento ilegal pois, os Bingos não são jogos, mas sim, espécie de Loteria regularizada, pois, expressamente permitida pela Lei 9.615/98 e suas alterações.
Seria, então que os bingos estariam imunes a qualquer responsabilização em caso de manterem máquinas “viciadas”?
De forma alguma! Qualquer irregularidade da manutenção das máquinas deve ser analisada apenas, e tão somente na área administrativa, pois administrativa é a natureza da autorização que possui o estabelecimento. Não há que se falar, pois, em responsabilidade penal, pois, o tanto o ilustre Delegado de Polícia, bem como o membro do Ministério Público poderiam incorrer agir ilegalmente ao diligenciarem, com vistas a instauração de inquérito penal.
Conclui-se mais uma vez que não há contravenção de jogo de azar a punir, pois, não haveria como estabelecer que as máquinas propusessem o jogo de azar simplesmente por ineficácia absoluta do meio empregado, pois gera risco apenas para uma das partes, ao contrário do que estipula a lei que para punir a contravenção do jogo de azar exige o risco de perda para ambas as partes. Ou seja, sendo as máquinas meios absolutamente ineficazes para tipificá-las como contravenção de jogo de azar, não haverá conduta a punir Em suma, exclui-se a tipicidade da conduta. Se não há conduta, não há tipo
2. Da natureza meramente administrativa da presente demanda
2.1. A “autorização” para funcionamento dos bingos
2.2. A possibilidade de revisão periódica das máquinas como expressão do poder de polícia administrativo
É certo que os bingos são espécie de loterias, também é certo que qualquer irregularidade no manejo das máquinas não podem ser enquadrados como adequadas ao tipo legal de contravenção de jogo de azar.
Como as loterias – leia-se, no caso, bingos – são autorizadas pelo Poder público, este pode se utilizar do seu poder de polícia para fiscalizar suas atividades, pois como todo direito, o exercício da atividade dos bingos já nasce limitado. Tanto isso é verdade que a própria Lei 9.615/98, bem como a Lei 9.981/2000 e seus respectivos decretos asseguram esse dever-poder à administração, antes incumbindo ao Indesp (art. 74, §2º do Decreto 2.514/99) agora cabendo à CAIXA (art. 15, parágrafo único do Decreto 3.659/00) o dever de “fiscalizar” os bingos.
Esse dever, conforme se interpreta da Lei, é periódico e visa assegurar o regular desenvolvimento dessa atividade lícita que são os Bingos.
A outra limitação ao exercício da atividade dos Bingos é apenas quanto a temporalidade da autorização que, segundo o art. 83 da lei 9.615 é de 12 meses, respeitando a Lei 9.881/00, que veda em seu art. 2º o deferimento de novas autorizações a partir de 31.12.2001.
Ou seja, o Poder público não pode punir penalmente a mesma situação que permite administrativamente, sendo que a única limitação possível ao direito a continuar com os bingos é apenas administrativa e diz respeito a adequação das máquinas.
Não haveria como dispor que as máquinas propusessem o jogo de azar simplesmente por ineficácia absoluta do meio empregado, pois gera risco apenas para uma das partes. Eventual conseqüência jurídica de possível irregularidade nas máquinas deveriam ser punidas administrativamente, passíveis, apenas da cassação da permissão.
Ou seja, Bingo é espécie de loteria e essa é autorizada, por isso não há ilegalidade penal.
Bingo não é jogo e qualquer irregularidade nas máquinas devem ser resolvidas administrativamente, não cabendo na tipificação de contravenção de jogo de azar.
A única punição possível, pelo fato de eventual inadequação das máquinas, é administrativa, pois, bingos não podem ser considerados jogos de azar, por isso atípica a conduta do Impetrante e serão ilegais quaisquer atos de autoridade que mantenham ou prossigam eventual persecução penal.
Sobre o texto: Texto inserido no Jus Navigandi nº 59. Elaborado em 05.2002.
Informações bibliográficas: RODRIGUES, Alexandre Alves; MOURA, Humberto Fernandes de. A contravenção de jogo de azar não abrange os bingos.

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